A União Soviética surgiu e se desenvolveu sob condições históricas e internacionais adversas
A União Soviética surgiu e se desenvolveu sob condições históricas e internacionais adversas, bem como com divergências na elite dirigente, mas obteve importantes conquistas. As bases mais imediatas da trama de sua queda se encontram nos anos 1970 (quando estava no apogeu econômico-militar), com o impacto da crise demográfica, decorrente da II Guerra Mundial. Ela acabou com a oferta de mão de obra e o “crescimento extensivo”, justamente quando o Ocidente lançava a Revolução Tecnológica. O apoio a diversas Revoluções no Terceiro Mundo e os efeitos da aliança sino-americana drenaram ainda mais recursos para a defesa.
Mas o elemento decisivo foi a estagnação política do conservador Brejnev (mais consumo e estabilidade em troca de acomodação), com a corrupção, a eternização de velhos dirigentes, a erosão do PCUS e o crescimento da economia paralela (mercado negro). A venda de petróleo no mercado mundial revelou-se fatal nos anos 1980, a renovação socialista de Andropov foi breve e surgiu o grupo reformista de Gorbachov, que priorizava consumo em lugar de investimentos.
A separação do Partido-Estado
Não conseguindo avançar com as reformas econômicas, Gorbachov buscou implementar reformas políticas, que fragmentavam o PCUS. Mais importante, entretanto, foi a descentralização que acompanhou essas medidas. Gorbi esperava, assim, criar um novo quadro político para desbloquear as reformas econômicas, mas o resultado foi o aumento vertiginoso e caótico da mobilização.
Face à crescente desagregação político-institucional, ao enfraquecimento do poder central e à erosão ideológica, os líderes locais, tanto opositores como os leais ao sistema, procuraram construir bases de poder na esfera local. A Perestroika foi capaz de desarticular o sistema anterior, mas não de construir algo novo em seu lugar. O retraimento da ação estatal deixava um vazio que era preenchido não por participação democrática, mas pela criminalidade, pelo clima de desmoralização, de “salve-se quem puder” e pela apropriação de empresas públicas por setores da cúpula político-administrativa, por meio de privatizações.
Gorbi começou a separar o Partido do Estado, tornando-se Presidente da URSS, novo cargo criado em março de 1990, eleito pelo soviete supremo. Na mesma eleição, os democratas (anticomunistas pró-mercado) venceram em Moscou e em Leningrado, encontrando em Ieltsin seu decidido líder. Instalou-se um poder dual, que inexistia desde 1917. Ele voltou à política, depois de perseguido por Gorbachov, e foi eleito deputado. Abandonou o PCUS e foi eleito presidente da Rússia, cargo criado em abril de 1991, num acordo com Gorbi, em troca do apoio ao Tratado da União, que este queria aprovar. Ieltsin tinha um mandato popular direto, de que Gorbachov carecia, e começou a luta decisiva: realizar a passagem ao capitalismo. Mas, para isso, ele teria de se livrar da União Soviética e agir apenas na Rússia, onde tinha poder para tanto, pois no plano federal havia o PCUS, as forças armadas, a KGB e os sindicatos, que resistiam a essas mudanças.
As forças econômicas privadas que emergiam com as reformas sob a fachada de “cooperativas” buscavam legitimidade e poder. O mercado negro e suas máfias cresciam rapidamente. Os gananciosos apoiadores de Ieltsin faziam pressão no sentido de uma mudança drástica para a passagem radical à economia de mercado. Se ele acabasse com a planificação, altos funcionários e diretores obteriam uma riqueza sem precedentes.
Gorbachov recorreu ao FMI mas nada obteve em troca da cessão do leste europeu. Seus aliados ocidentais o abandonavam e a pressão pela terapia de choque era crescente. Mas grande parte de seu grupo achava tal estratégia uma loucura. Enquanto isso, Ieltsin nomeava elementos pró-mercado, que entendiam que o controle sobre a Rússia permitiria um rápido processo de privatizações, o que as repúblicas mais ricas já haviam percebido.
Assim, a Perestroika de Gorbachov, depois de entregar ao Ocidente o seu patrimônio diplomático e de abrir sua economia, ingressou em uma crise terminal, com o caos social e econômico e os conflitos étnico-políticos se generalizando. Em março de 1991, um plebiscito ainda aprovou a manutenção de uma federação renovada por 76% dos votos (a União de Estados Soberanos), a qual concederia maior autonomia às repúblicas e repartiria o controle acionário do patrimônio econômico da União entre elas (proporcionalmente à população de cada uma), sem, entretanto, desmembrá-lo. Ora, tratava-se de um mecanismo que equilibraria as forças centrífugas, o que desagradou as repúblicas mais ricas, em geral menos povoadas. Mas o enfraquecimento do PCUS eliminou o único mecanismo que mantinha unida uma população heterogênea.
Em meados de 1991, enquanto Gorbi ia à reunião do G-7 pedir ajuda e voltava de mãos vazias, Ieltsin interditava a atuação do PCUS em todas as instituições públicas russas. Ele ainda tentava modificar o Tratado da União para poder controlar as receitas da Federação Russa, o que causaria o fim da URSS. Em 19 de agosto de 1991, assessores de Gorbachov, face ao descalabro da situação, formaram o Comitê Estatal para o Estado de Emergência (CEEE), furiosos com o que percebiam como a rendição de Gorbi a Ieltsin. Na praia em que se encontrava em férias, Gorbachov foi comunicado, mas, alienado da realidade, ele recusou, ainda que a ideia não fosse derruba-lo.
Com insegurança, o CEEE fez uma Declaração ao Povo: “surgiram forças extremistas que [fomentam] a liquidação da URSS”. Denunciava as reformas econômicas de “aventureiros que [provocaram] queda acentuada nos padrões de vida da população e o florescimento da especulação e da economia-sombra”, apelando pelo debate de um novo Tratado da União. Entretanto, os democratas falavam e agiam livremente, voltados para o Ocidente e para o público interno, se entrincheirando no parlamento, que não foi atacado pelo CEEE.
O estranho e mal articulado “golpe de Estado” (com soldados desarmados) procurou deter a desagregação do país, sem abandonar as reformas. Na verdade, não era um golpe, e sim o uso de um dispositivo legal pelo próprio governo. Mas foi suplantado pelo golpe melhor articulado de Ieltsin. Ele assume o poder de fato e ignora o plebiscito que manteria uma federação renovada. Gorbachov retorna a um poder apenas formal, embora houvesse amplo apoio desorganizado contra Ieltsin. Ao contrário do que se apregoa, foi a Rússia (comandada por Ieltsin) que provocou a dissolução da URSS, pois ela era rica e ali havia os instrumentos necessários para aplicar a terapia de choque liberal.
Com a impotência e crise do governo central, as repúblicas federadas proclamaram suas independências e se apropriaram do patrimônio da União localizado em seu território. Algumas delas eram lideradas por nacionalistas separatistas liberal-conservadores, e outras por comunistas que apenas reagiam (não queriam a independência), desejosos de evitar a caça às bruxas desencadeada por Ieltsin. Do desmembramento da URSS surgiram quinze novos Estados.
Gorbachov revelou-se, então, uma figura patética, assistindo impotente à dissolução oficial da URSS em 25 de dezembro de 1991. É importante lembrar que as cinco repúblicas da Ásia Central, a Armênia e a Bielorrússia foram, até o fim, contrárias ao desmantelamento da URSS, e se tornaram “independentes” contra a vontade de seus povos e dirigentes, pois dependiam financeiramente do governo central e não desejavam reformas. A Ucrânia, que desejava um status equivalente ao da Rússia na URSS, e jogara com o nacionalismo, foi ultrapassada pelos acontecimentos e não avançou nas reformas.
Um balanço das causas
Por que o sistema soviético, que parecia tão forte, se mostrou tão frágil em sua queda. Para Fidel Castro, “a existência da URSS [parecia ser] tão segura como o nascer do sol, pois era um país sólido, poderoso e forte que sobrevivera a provações extremas”. De fato, em cinquenta anos o país passou de uma produção industrial que correspondia a apenas 12% para 80% da dos EUA. Se o capitalismo sobreviveu a Herbert Hoover, o presidente republicano que precipitou os EUA na Grande Depressão, por que a URSS não sobreviveu a Gorbachov? A dimensão subjetiva é mais importante para o socialismo do que para o capitalismo, pois ele já existia há longo tempo e crescia, enquanto o socialismo estava ainda em construção. Não havia um “mercado”, com sua “mão invisível”, que o conduzisse. No capitalismo a economia constitui a instancia dominante, enquanto no socialismo a centralidade reside na política.
A derrubada do socialismo e a desintegração da URSS foi o resultado de ações concretas, como a desarticulação do Partido por suas lideranças, a entrega dos meios de comunicação a personalidades e grupos antissocialistas, a privatização e abandono da propriedade pública e do planejamento, o separatismo e a subjugação às potências adversárias. Segundo Keeran & Kenny (2008), “não foram insuficiências amorfas e abstratas da democracia socialista que 'causaram' esta política. A direção de Gorbachov no PCUS iniciou tudo isso como opções políticas conscientes” (p. 238).
Há várias explicações sobre o colapso: a) vícios do socialismo, b) oposição popular, c) fatores externos, d) contrarrevolução burocrática, e) falta de democracia e centralização excessiva e f) o fator Gorbachov. Sobre o primeiro ponto, argumentou-se que esse regime político “contrariava a natureza humana e estava destinado ao fracasso”. Embora possa haver críticas à manutenção de mecanismos coercitivos da época da tomada do poder e deformações decorrentes da tensão da Guerra Fria, nada disso produziu a crise ou o colapso do regime por mais de 70 anos. Pelo contrário, foi a mudança que causou a catástrofe, referida por Putin como “a maior tragédia da história russa”. Quanto à existência de uma oposição popular, empiricamente se constata que o descontentamento surgiu no final, e não no início da era Gorbachov. Portanto, foi mais efeito que causa.
A propósito dos fatores externos, ainda que tenham sido consideráveis, a URSS seguia forte como nas épocas de cerco e sanções que, aliás, foram mais a regra do que a exceção durante sua existência. Com relação à chamada contrarrevolução burocrática, pode-se argumentar que o elemento detonador do colapso foi a luta entre as facções de Gorbachov e de Ieltsin. A burocracia do Partido-Estado reagia aos acontecimentos e não os iniciava, porque as estruturas vigentes não o permitiam. O problema maior foi a emergência da segunda economia, que contagiou parte da sociedade e do aparato, não o Partido em si mesmo.
Recorrente é o argumento de que a falta de democracia e a excessiva centralização seriam o fator principal. Ocorre se tratar de uma tese idealista e a-histórica, porque explica a evolução histórica pela aproximação ou distanciamento de um ideal. Os teorizadores deste argumento desconhecem a história da democracia liberal e da socialista. O liberalismo só gradualmente afirmou a democracia como valor (em geral quando desafiado socialmente), enquanto o socialismo sempre defendeu o governo das classes mais baixas. Mas, então, por que a população teria assistido passiva à destruição do seu “Estado dos trabalhadores”? De fato, houve resistência, mas por que foi insuficiente? A aquiescência de uma sociedade a políticas que não servem os seus interesses constitui um fenômeno desconcertante, bem conhecido nos países capitalistas, onde assistimos a pessoas votarem em partidos cujos projetos vão contra seus interesses.
Segundo Keeran & Kenny,
Os jornais, os sovietes e o PC foram subvertidos por Gorbachov. Assim, ao passo que a maioria da população soviética ainda se opunha à privatização da propriedade, à eliminação do controle de preços e à ruptura da URSS, os modos tradicionais de expressão das opiniões estavam desaparecendo. [Além disso], que a passividade dos trabalhadores teria em parte acontecido porque ao mesmo tempo que Gorbachov e outros provocaram a erosão do nível de vida, prometiam aos trabalhadores um socialismo melhor [mas] os privavam das próprias instituições através das quais eles tinham antes exprimido os seus pontos de vista”.
Finalmente, há quem vê em Gorbachov apenas um traidor ou um elemento sem ideologia, que só perseguia o poder. Mesmo tentadora, essa tese é problematica, pois ele não agiu sozinho e havia um contexto e uma base de apoio. Ao se afastar das ideias de Andropov, ele se aproximou de outras antigas teses do Partido, defendidas por Bukharin e Krushov. E as ideias e ações ganharam expressão no quadro dos interesses do setor dinâmico (mas parasitário) vinculado às atividades privadas ilegais. E tentar identificar uma agenda prévia e ações premeditadas não condiz com a realidade, pois os fatos apontam mais para um líder superficial, impulsivo e contraditório. Ainda que suas políticas fossem de capitulação aos interesses internos liberais e à pressão externa, isto no início não era evidente. O que guiou seus atos foi o oportunismo e não uma estratégia predeterminada. Não se tratou da traição de um homem, mas do triunfo de uma tendência dentro do próprio grupo dominante.
Obra: Os paradoxos da Revolução Russa
Editora Alta Books: Rio de Janeiro, 2017.
Paulo Fagundes Visentini
A obra apresenta novas teses sobre o stalinismo, as guerras e a queda da URSS, bem como informações pouco conhecidas, em uma síntese histórica da Revolução que marcou o século XX.